sábado, 30 de maio de 2009

Sofía Castañón

Chamo-me Sofía



Chamo-me Sofía
e desde pequena
tenho ouvido que é nome
de rainha.

Chamo-me Sofía
como os passos obscuros da minha avó
antes que um comboio me deixasse só
um nome
e um vazio
na memória.

Chamo-me Sofía
igual a conhecimento,
recordam-no aqueles que sabem três
palavras de grego e têm
muito pouco que contar.

Chamo-me Sofía
e nunca me dizem
como Coppola, como Marceau,
como a de Kill Bill
aquela a quem cortaram os dois braços.

E desculpo-me
por não ter um Jostein Gäarder
no meu mundo, por não
querer estar na ribalta, por não
ter da Bulgária mais do que um postal
que não era para mim.

Chamo-me Sofía
e desde pequena tenho ouvido
que é nome
de rainha e também
que por aqui chove muito
e que antes se lia mais
e que as crianças já não sabem brincar
e tantas outras
conversas de café. Por isso
para evitarmos
tanto tópico
e tanto discurso monárquico
queria chamar-me
de vez em quando
Dolores, Virgínia, Marguerite
e falar também
de revolução.



(versão minha; original reproduzido em 23 Pandoras - poesia alternativa española, selecção e prólogo de Vicente Muñoz Álvarez, Ediciones Baile del Sol, 2ª edição, Tenerife, 2009, pp. 37-38).

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Déborah Vukušić

chamo-me déborah vukušić



chamo-me déborah vukušić
sou duas metades
metade galega e metade croata
tenho 26 anos
23 de maio de 1979
saio para a luz

déborah em hebraico
'abelha'
vukušić em croata
uši: 'orelhas'
vuk: 'lobo'

abelha com orelhas de lobo




(versão minha, a partir do original em galego (?) e da sua versão castelhana (?), reproduzidos em 23 Pandoras - poesia alternativa española, selecção e prólogo de Vicente Muñoz Álvarez, Ediciones Baile del Sol, 2ª edição, Tenerife, 2009, p. 71; mais informação aqui e aqui).

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Steve Kowit

A lição de gramática



Um nome é uma coisa. Um verbo é a coisa que se faz.
Um adjectivo é o que descreve o nome.
Em "A vasilha de beterrabas está cheia com cotão carmesim"

de e com são preposições. A é
um artigo, uma vasilha é um nome,
um nome é uma coisa. Um verbo é a coisa que se faz.

Uma vasilha pode ressoar - ou não. O que não é foi
ou pode ser, pode significando o ainda não conhecido.
"A nossa vasilha de beterrabas está cheia com cotão carmesim"

é o presente do indicativo. Enquanto palavras como nossa e nós
são pronomes - isto é, isto é bolorento e eles são castanhos e repelentes.
Um nome é uma coisa; um verbo é a coisa que se faz.

Está é um verbo auxiliar. Auxilia porque
cheia não é uma forma verbal completa. A vasilha é o que é nosso
em "A nossa vasilha de beterrabas está cheia com cotão carmesim".

Entendem? Não há muito mais a saber. É
só memorizar estas regras... ou escrevê-las no caderno!
Um nome é uma coisa, um verbo é a coisa que se faz.
A vasilha de beterrabas está cheia com cotão carmesim.



(versão minha; original reproduzido aqui).

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Blaga Dimitrova





A árvore perdoa ao vento
que lhe saqueia as folhas
e abraça-o com os ramos.
A ave perdoa à nuvem
que engole o sol
e saúda-a com as asas.
A onda perdoa à pedra
que lhe impede o salto
e envolve-a em carícias.
Só o homem não perdoa
ao ar, à água, à pedra,
a nenhuma criatura terrestre.
Persegue tudo com crueldade.

E está só no universo.




1994



(versão minha, a partir da tradução para castelhano de Zhivka Baltadzhieva, reproduzida em Espacios, tradução e prólogo de Z. Baltadzhieva, La Poesia, señor hidalgo, Barcelona, 2006, p. 113).

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Carol Ann Duffy

Educação para o ócio



Hoje vou matar alguma coisa. Qualquer coisa.
Estou farto de ser ignorado e hoje vou
representar o papel de Deus. É um dia vulgar,
uma mistura de cinzento e tédio arrebatador pelas ruas.

Esmago uma mosca contra a janela com o polegar.
Fizémo-lo na escola. Shakespeare. Foi noutra
língua e agora a mosca mudou-se para outra língua.
Expiro talento no vidro para escrever o meu nome.

Sou um génio. Poderia ser o que quisesse, com metade
da sorte. Mas hoje vou mudar o mundo.
O mundo de qualquer coisa. O gato evita-me. O gato
sabe que eu sou um génio, e escondeu-se.

Deito pela sanita os peixes dourados. Puxo o autoclismo.
Vejo como isto é bom. O periquito está aterrorizado.
De quinze em quinze dias, faço três quilómetros até à cidade
por causa de uma assinatura. Eles não gostam do meu autógrafo.

Não há nada para matar. Telefono para a rádio
e digo ao homem que está a falar com uma super-estrela.
Ele desliga. Pego na nossa faca do pão e saio.
O piso resplandece de súbito. Toco no teu braço.



(versão minha; o original pode ser lido aqui).

terça-feira, 5 de maio de 2009

William Stafford

Junto ao Monumento Não-Nacional ao longo da fronteira canadiana



Este é o campo onde a batalha não se deu,
onde o soldado desconhecido não morreu.
Este é o campo onde a erva encontra as mãos,
onde não há nenhum monumento
e a única coisa heróica é o céu.

Os pássaros voam aqui sem produzirem som,
abrindo as asas através do espaço aberto.
Ninguém matou - ou foi morto - sobre esta terra
sagrada pelo abandono, uma brisa tão doce
que as pessoas celebram esquecendo o seu nome.





(versão minha; o original pode ser lido aqui).

domingo, 3 de maio de 2009

Jorge Urrutia

(Porque sou só verbo)



Uma só Anne Frank comove-nos mais que as inumeráveis pessoas que sofreram o mesmo que ela. E assim talvez tenha que ser: se tivéssemos que e pudéssemos partilhar os sofrimentos de todas as pessoas, não poderíamos continuar a viver.


Primo Levi



Este parágrafo pode ter dois comentários que interessam
de um ponto de vista semiótico.
Não importa tanto, para comover, para convulsionar, para
reclamar a acção, o sofrimento como o signo do sofrimento.
Através do seu diário, a jovem Anne converteu-se
nisso, em signo da maldade, não já sofrida, antes exercida sobre
o ser humano. À ética não diz respeito a maldade pelo sofrimento,
antes pelo acto.
No entanto, para se converter em símbolo, Anne Frank precisou
da escrita. Sem esta não teria havido Anne, e sem Anne careceria
de expressão a dor sofrida e a injustiça cometida.
Logo, terrivelmente (e digo bem "terrivelmente"), só a
escrita importa. No fim, só a escrita é.





(versão minha; original reproduzido em Metalingüísticos y sentimentales, introdução, notas, selecção de poemas e organização de Marta Sanz Pastor, Biblioteca Nueva, Madrid, 2007, pp. 268-270).