segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Hélène Dorion

Pode-se viver muito bem...



Pode-se viver muito bem
sem nada mais do que estes privilégios quotidianos:
uma carta na caixa do correio, o barulho de uma vaga,
o azul sobre a planície, as palavras de um poema.
O universo reduzido a poucos vínculos
ao trajecto habitual
da sua própria morte.

Pode-se muito bem não ser mais
do que uma aventura de átomos e de questões insignificantes.



(Versão minha; original reproduzido em Poèmes pour voyager - anthologie des poèmes dans le métro et le bus, selecção de Gérard Cartier e Francis Combes, Les Temps des Cerises, Pantin, 2005, p. 82).

domingo, 19 de dezembro de 2010

Sara Teadsdale

Aquelas que amam



Aquelas que mais amam
Não falam do seu amor,
Francesca, Guinevère,
Deirdre, Isolda, Heloísa,
Nos jardins perfumados do paraíso
Ficam em silêncio, ou falam
De coisas frágeis e inconsequentes.

E uma mulher que eu costumava encontrar
E que amou um homem desde a juventude,
Lutando com orgulho sombrio
Contra a força do destino,
Nunca falou deste assunto,
Mas se por acaso ouvisse o nome dele
Uma luz havia de sobrevoar o seu rosto.



(Versão minha; original reproduzido em Good poems, selecção e introdução de Garrison Keillor, Peguin Books, Nova Iorque, 2002, p. 137).

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Gerard Locklin

Onde estamos



(para edward field)



tenho inveja daqueles
que vivem em dois sítios:
nova iorque, digamos, e londres;
país de gales ou espanha;
l.a. e paris;
hawai e suíça.

há sempre a antevisão
da mudança, a possibilidade de que aquilo que está mal
resulta do sítio onde estamos. sempre
adorei não só a frescura
da chegada como o alívio da partida. com
duas casas qualquer movimento seria um regresso.
nem me estou a referir ao clima, quente
ou frio, seco ou húmido: falo de esperança.



(Versão minha; original reproduzido em Good poems, selecção e introdução de Garrison Keillor, Peguin Books, Nova Iorque, 2002, p. 286).

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Leo Dangel

Depois de quarenta anos de casamento, ela experimenta uma nova receita de hambúrguer como prato quente



"O que é que achaste?", perguntou ela.

"Tudo bem", disse ele.

"Esta é a terceira vez que o faço
desta maneira. Porque é que
nunca dizes que gostas de alguma coisa?"

"Bem, se não tivesse gostado
não teria comido", disse ele.

"Nunca consegues dizer que uma coisa
feita por mim te sabe bem."

"Não sei porque é que pensas
que tenho de estar sempre a dizer que é bom.
Comi, não foi?"

"Não penso nada que tenhas de estar
sempre a dizer que é bom, mas de vez
em quando podias dizer
que gostas."

"Tudo bem", disse ele.



(Versão minha; original reproduzido em Good poems, selecção e introdução de Garrison Keillor, Peguin Books, Nova Iorque, 2002, p. 136).

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Wendy Cope

A laranja



À hora de almoço comprei uma laranja enorme -
O seu tamanho pôs-nos todos a rir.
Descasquei-a e dividi-a com o Robert e o Dave -
Cada um deles ficou com um quarto e eu com metade.

Fez-me tão feliz essa laranja -
Como me tem acontecido ultimamente
Com as coisas vulgares. As compras. Um passeio no parque.
Esta paz e satisfação. É uma novidade.

O resto do dia foi muito leve.
Cumpri com prazer todas as tarefas da minha lista
E ainda me sobrou tempo.
Amo-te. É maravilhoso viver.



(Versão minha; original reproduzido em Good poems, selecção e introdução de Garrison Keillor, Peguin Books, Nova Iorque, 2002, p. 133).

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Erica-Lynn Gambino

É só para dizer

(para William Carlos Williams)



Só te
pedi que
saísses do meu
apartamento

mesmo que tu
nunca
tenhas pensado
que o faria

Perdoa-me
estavas
a pôr-me
doida



(Versão minha; original reproduzido em Good poems, selecção e introdução de Garrison Keillor, Peguin, Nova Iorque, 2002, p. 110).

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

David Allan Evans

Rapariga andando a cavalo num campo de girassóis



Postura perfeitamente direita,
satisfeita e pensativa,
ela prende numa mão,
não segura, as rédeas do Verão:

o verde das árvores e dos arbustos;
o azul da água do lago;
o vermelho da jaqueta
e do colarinho aberto; o castanho
do seu cabelo, preso ao alto,
e do cavalo, bem no meio
do amarelo dos girassóis.

Quando ela pára para descansar,
o Verão descansa.
Quando ela decide partir,
assim se vai o Verão
para além do horizonte.



(Versão minha; o original pode ser lido aqui).

sábado, 20 de novembro de 2010

Roberto D. Malatesta

Exame de inglês



Líamos Dylan Thomas para o teu exame de inglês,
mas não estava ali o teu exame, a severidade de uma aula,
a lição decisiva que era preciso temer.
Estava, sim, a colina dos fetos
com o seu sol tombando em rios de ouro palpável,
estava o sol sobre os declives
na sua sagrada fascinação de beijar
as crianças que acabavam de começar a andar.
Estavam as eiras de feno a partir das quais
segui o trilho das ervas altas
que me levou aos caminhos da minha infância.
Não havia ali nenhum mundo maciço,
antes uma substância núbil cobrindo o ar
na qual as minhas palavras se lançavam felizes
pelo seu som, pela sua cadência e cor.
Em voz alta Dylan Thomas para o teu exame de inglês,
juntos aprovámos esse regaço de luz verbal
comovida entre as folhas frescas dos fetos.



(Versão minha a partir do original e da tradução francesa de Nicole e Émile Martel, reproduzidos em Voix d'Argentine / voces argentinas, selecção de Claudia Schvartz e Gerardo Manfredi, Leviatán (Buenos Aires), Écrits des Forges (trois-Rivières - Québec) e Le Temps des Creises (Pantin), 2009, pp. 118-119).

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Jean L' Anselme

Versos sem brilho
(Arte poética)



Vinte vezes metido no trabalho
de tirar brilho à obra,
um verso demasiado polido
não deve permanecer na rede

Desconfiem dos versos esplendorosos.



(Versão minha; original reproduzido em Poèmes pour voyager - anthologie des poèmes dans le métro et le bus, selecção de Gérard Cartier e Francis Combes, Le Temps des Cerises, Pantin, 2005, p. 144).

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Sergio Rigazio

Sapos



quase na linha que limita a pobreza
molho os lábios com o que me é dado

algo me diz que tudo é uma benção
que até no mais perfeito caos há uma certa ordem

em redor da minha casa
por exemplo

penso nestas coisas
enquanto destapo o esgoto da cozinha

meto trinta e seis sapos num saco de supermercado
e penso que nos assemelhamos em alguma coisa

não fazem ideia para onde irão
mas ainda assim cantam



(Versão minha a partir do original e da tradução francesa de Nicole e Émile Martel reproduzidos em Voix d' Argentine / voces argentinas, selecção de Claudia Schvartz e Gerardo Manfredi, Leviatán (Buenos Aires), Écrits des Forges (Trois-Rivières - Québec) e Le Temps des Cerises (Pantin), 2009, pp. 144-145).

domingo, 7 de novembro de 2010

Roberto D. Malatesta

Árvores



Algumas árvores que já não tenho
regressam-me em sonhos:
o salgueiro-chorão da minha infância,
a linha escura das sebes de ligustros,
as casuarianas e o seu modo de uivar,
um limoeiro que chega ao tecto,
uma figueira que viu a minha mãe crescer
e ao sol, à hora da sesta, me ouviu
conversar com a minha avó,
as folhas pesadas da árvore-da-borracha que oiço cair.
São tão nítidas
como se as tocasse depois de andar por um atalho
que envergonhasse o tempo.
Às vezes creio que alguma coisa delas
cresceu em mim,
que eu sou uma das minhas árvores.



(Versão minha a partir do original e da tradução francesa de Nicole e Émile Martel reproduzidos em Voix d' Argentine / voces argentinas, selecção de Claudia Schvartz e Gerardo Manfredi, Leviatán (Buenos Aires), Écrits des Forges (Trois-Rivières - Québec) e Les Temps des Cerises (Pantin), 2009, pp. 120-121).

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Gerardo Pico Manfredi

Alegria e fibras...



Alegria e fibras
são a base da nossa alimentação.
Beijo-te e regresso à cozinha.
Pico com paciência e rigor
cebola, pimento, alho francês.
Junto tudo às favas,
mais sal, pimentão, gengibre.
Deixo cozer em lume brando durante alguns minutos,
apago o fogo, junto salsa.
Farei também uma salada
de três cores: vermelho, laranja e verde.

Depois de comer hei-de ler-te este poema.



(Versão minha a partir do original e da tradução francesa de Nicole e Émile Martel reproduzidos em Voix d' Argentine / voces argentinas, selecção de Claudia Schvartz e Gerardo Manfredi, Leviatán (Buenos Aires), Écrits des Forges (Trois-Rivières - Québec) e Le Temps des Cerises (Pantin), 2009, pp. 126-127).

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Roberto D. Malatesta

Dois poemas nutritivos



Ela corta bocados de pão
e junta-os ao café com leite,
observo as suas mãos minuciosas,
a fronte concentrada,
o seu ar ritual;
ela bebe, eu alimento-me
dela e da sua tigela
azul com flores vermelhas.



****



Enquanto ela prepara o café
eu fico a pensar na lua,
não pela lua em si,
não porque seja a lua a interessar-me esta noite,
ou porque haja astronautas ou algum eclipse,
penso na lua lá fora
porque aqui dentro
- ela - prepara o café.



(Versão minha a partir do original e da tradução francesa reproduzidos em Voix d' Argentine / voces argentinas, selecção de Claudia Schavrtz e Gerardo Manfredi, tradução francesa de Nicole e Émile Martel, Leviatán (Buenos Aires), Écrits des Forges (Trois-Rivières - Quebec) e Le Temps des Cerises (Pantin), 2009, p. 114).

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Enrique M. Butti

Ao recém-nascido



Será Píndaro, Platão, Ptolomeu,
inventará o fogo
e descobrirá cada estrela,
será Ulisses, reinará no seu mundo.

Tudo lhe será possível:
a salvação e o Paraíso
que são os dias do amor
e da amizade
e da ambição desinteressada.

Mas será também - tremo de espanto
enquanto o vejo sorrir nos seus sonhos -
Rascolnikov, um escravo
que prefere morrer pela liberdade,
um budista que medita
enquanto cai a bomba de Hiroshima.
No único destino
que se desenrolará
prevejo que vibrará na fraternidade
de todos os destinos.
Há flores que nascerão só
para ele
e para as quais ele nasce.



(Versão minha a partir do original e da tradução francesa reproduzidos em Voix d' Argentine / voces argentinas, organização de Claudia Schvartz e Gerardo Manfredi, tradução francesa de Nicole e Émile Martel, Leviatán (Buenos Aires), Écrits des Forges (Trois-Rivières/Québec) e Le Temps des Cerises (Pantin), 2009, p. 56).

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Pierre Albert-Birot

A erva dizem vocês...



A erva dizem vocês
Não faz qualquer barulho a despontar
A criança a crescer
O tempo a passar
Não têm o ouvido verdadeiramente apurado vocês.



(Versão minha; original reproduzido em Poèmes pour voyager - anthologie des poèmes dans le métro et le bus, Le Temps des Cerises, Pantin, 2005, p. 13).

sábado, 23 de outubro de 2010

Marlene Dumas

Medindo o teu próprio túmulo



Eu sou a mulher que já não sabe
onde quer ser sepultada.
Quando era pequena, queria um anjo enorme no meu túmulo
com asas como num quadro de Caravaggio.
Mais tarde achei isso demasiado pomposo.
E então pensei que preferia uma cruz.
Depois pensei - uma árvore.
Eu sou a mulher que já não sabe
se quero ser sepultada.
Se já ninguém vai a cemitérios
se vocês já não me visitam lá
também sou capaz de deixar as minhas cinzas num frasco de compota
e ser mais transportável.

Mas voltemos à minha exposição aqui.
Disseram-me que as pessoas querem saber
porquê um título tão sóbrio para uma mostra?
Trata-se de algo sobre artistas a meio da sua carreira,
ou é sobre mulheres depois dos cinquenta danos?
Não. Quero deixar isto claro:
É a melhor definição que consigo encontrar
para aquilo que um artista faz quando se trata de arte
e para o modo como uma figura deixa a sua marca num quadro.
Para o tipo de retratista como eu
isto é tão longe quanto consigo alcançar.



(Tradução de Ricardo Castro Ferreira; Marlene Dumas é uma artista plástica sul africana; o texto/poema original pode ser lido algures por aqui).

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Maria Teresa Andruetto

Maca



Estou de cama
(a enfermeira
chama-se Erminda)
Pela janela que dá para o pátio
a minha irmã passa numa maca.
Passam também as amoras, o verão,
as cigarras. Há-de ser Outubro,
como esta tarde, ou talvez Novembro,
e o calor sufoca, porque o meu pai
que chega do trabalho desaperta,
coisa estranha, a gravata. Eu estou
de cama. E a Ana que passa alegre,
viva, sobre a maca.
Terá sido de vidro o ar,
como esta tarde.



(Versão minha a partir do original e da tradução francesa reproduzidos em Voix d' Argentine / voces argentinas, selecção de Claudia Schvartz e Gerardo Manfredi, tradução para francês de Nicole e Émile Martel, Leviatán (Buenos Aires), Écrits des Forges (Trois-Rivières / Québec) e Le Temps des Cerises (Pantin), 2009, p. 16).

sábado, 16 de outubro de 2010

Charlotte Delbo (1913-1985)

Oração aos vivos para que sejam perdoados por estarem vivos



Eu suplico-vos
fazei qualquer coisa
aprendei um passo
uma dança
alguma coisa que vos justifique
que vos dê o direito
de vestir a vossa pele o vosso pêlo
aprendei a andar e a rir
porque será completamente estúpido
no fim
que tantos tenham sido mortos
e que vós viveis
sem nada fazer da vossa vida.



(Versão minha a partir do original reproduzido em Poèmes pour voyager - anthologie des poèmes dans le métro et le bus, Le Temps des Cerises, Pantin, 2005, p. 71).

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Jean Marcenal

O cão



O cão vive de pouco

Aquilo que o dono não quer
Atira aos cães

Mas quando o cão tem demasiada fome
Devora o dono.



(Versão minha a partir do original reproduzido em Poèmes pour voyager - anthologie des poèmes dans le métro et le bus, Le temps des Cerises, Pantin, 2005, p. 164).

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Maria Teresa Andruetto

Segunda-feira



Às segundas-feiras o meu pai chegava tarde
e trazia chocolates amargos.
Na cama grande, a mamã lia-nos
A Cabana do Pai Tomás.
Nós gostávamos das segundas-feiras,
gostávamos de chorar por causa das tristezas
de romance, de sofrer pelos negros
enquanto comíamos chocolates
Suchard.



(Versão minha a partir do original e da tradução francesa reproduzidos em Voix d' Argentine / voces argentinas, selecção de Claudia Schvartz e Gerardo Manfredi, tradução para francês de Nicole e èmile Martel, Leviatán (Buenos Aires), Écrits des Forges (Trois-Rivières/Québec) e Le temps des Cerises (Pantin), 2009, p. 22).

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Maria Teresa Andruetto

Visita



Hoje a minha mãe veio visitar-me
e caminhamos as duas por estas ruas.
Falamos do meu irmão,
dos filhos, das raparigas do Sul,
do meu cunhado. A dado passo eu critiquei
o governo e ela afirmou a seguir
"É um país tão grande!". Não quer
que me queixe: "Este país generoso
acolheu o teu pai!", e seguimos as duas
por uma zona de tristeza, em silêncio,
até que se detém e diz: "ontem
fiz doce de pêssego" e eu digo
que falaram do meu livro
no jornal.



(Versão minha a partir do original e da tradução francesa de Nicole e Émile Martel reproduzida em Voix d' Argentine / voces argentinas, selecção de Claudia Schvartz e Gerardo Manfredi, Leviatán (Buenos Aires), Écrits des Forges (Trois-Rivières / Québec) e Le Temps des Cerises (Pantin), 2009, p. 28).

domingo, 26 de setembro de 2010

Oleg Grigoriev

A laranja




O Boris, sentado num tronco, comia uma laranja.
Gomo após gomo.
O Nicolas veio sentar-se ao pé dele.
- É boa?
- Muito boa!, responde o Boris.
- Ah!, suspira o Nicolas. Se eu tivesse uma laranja havia de a partilhar contigo.
- Claro, diz o Boris, engolindo o último gomo da sua laranja. É pena não teres uma laranja!

(Versão minha a partir da tradução francesa de Henri Abril reproduzida na Anthologie de la poésie russe pour enfants, tradução e selecção de H. Abril, 3ª edição, Circé, Belval, 2009, p. 173.)

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Charles Baudelaire

O albatroz



Muitas vezes, por pura diversão, os marinheiros
Apanham albatrozes, enormes pássaros marítimos,
Que acompanham, de viagem indolentes companheiros,
O navio vogando sobre os amargos abismos.

A custo eles são largados sobre as pranchas,
Esses reis do azul, tímidos e desajeitados,
Humildemente deixando cair suas enormes asas brancas
Como soltos remos pelo chão arrastados.

Esse viajante alado, como anda desajeitado num limbo!
Ele, outrora tão belo, como é cómico e desleixado!
Um espicaça-lhe o bico com o seu cachimbo,
Outro, coxeando, imita o que voava, agora aleijado.

O poeta é como o príncipe das nuvens
A rir-se do arqueiro e a tempestade a afrontar;
Exilado na terra e na algazarra dos homens,
As suas asas de gigante impedem-no de andar.



(Tradução inédita de Ricardo Castro Ferreira e Gil Santos Júnior).

domingo, 19 de setembro de 2010

Peter Cherches

O meu marido obrigou-me a fazer sexo com o nosso periquito



O meu marido obrigou-me a fazer sexo com o nosso periquito
Na passada sexta-feira à noite.

Tava a ficar tarde,
Ele tinha passado a noite toda a beber cerveja,
E vira-se pra mim e diz,
"Querida, quero que fodas com o nosso periquito."

Vou eu e digo-lhe,
"Por favor, Bobby, não me obrigues a fazer isso."
E ele diz,
"Tem de ser!"

E assim foi:
Eu e o periquito,
E o Bobby ali especado a ver.

Não gostei assim muito,
E o pássaro até me 'stava a aleijar bastante,
E eu sentia-me mesmo mal,
Até que o periquito me diz:
"Querida, amo-te bué."

Tal e qual como o Bobby costuma dizer.



(Versão minha; o original pode ser lido aqui.)

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Bernardo Atxaga

A vida é a vida



A vida é a vida,
não as suas consequências.

Não a casa sólida
construída no topo de uma montanha,
ou as taças e as medalhas
banhadas a ouro
amontoadas nas suas prateleiras.
A vida não é isso.
A vida é a vida.

Não as viagens
até cidades longínquas
ou as crianças, homens
e mulheres nelas mal ou
esplendidamente fotografadas.
A vida não é isso.
A vida é a vida.

Não a chuva no telhado,
ou o granizo nas janelas,
ou a neve, ou a lua silenciosa,
ou a luz, tão magnífica,
dourada no Verão e prateada no Inverno.
A vida não é isso.
A vida é a vida.

Não a mulher ou o homem
que te sussurram ao ouvido,
não os nossos pais, ou filhos,
não os nossos irmãos ou irmãs ou amigos,
velhos ou novos.
A vida não é nada disso.
A vida é a vida.



(Versão minha a partir da tradução inglesa de Amaia Gabantxo reproduzida em Six basque poets, selecção e introdução de Mari Jose Olaziregi, Arc, Todmorden, p. 45.)

domingo, 12 de setembro de 2010

Valentin Bérestov

A sombra



Quem poderá ser-te mais fiel
Que a tua sombra? É sempre ela
Que te segue com zelo por toda a parte
Sem que lhe seja pedido -
Mais ligeira do que uma asa,
Mais doce do que uma rola.
Mas é ela justamente,
Tão doce e fiel,
Que não te pode ajudar,
Nem esconder-te ou salvar-te
Em pleno deserto, sob o sol
Mais cruel...



(Versão minha a partir da tradução francesa de Henri Abril reproduzida na Anthologie de la poésie russe pour enfants, selecção e tradução de H. Abril, Circé, Belval, 2006, 3ª edição, p. 111).

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Roman Sef

As máquinas



Eis uma máquina
Que escreve.
Eis uma máquina
Que multiplica
E pode subtrair.
E outra que
Que sabe ordenhar,
Que mói
E corta tudo.
E eis uma que, eh lá!,
Corre e galopa
A cem à hora...

Mas não há,
Não sei porquê,
Não há
Uma máquina
Que chore.



(Versão minha a partir da tradução francesa de Henri Abril reproduzida em Anthologie de la poésie russe pour enfants, selecção e tradução de H. Abril, Circé, Belval, 2006, 3ª edição, p. 139).

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Valentin Bérestov

Psicologia



"Que vida de cão!", diz o gato.
E sente-se logo melhor.



(Versão minha a partir da tradução francesa de Henri Abril reproduzida em Anthologie de la poésie russe pour enfants, selecção e tradução de H. Abril, Circé, Belval, 2006, 3ª edição, p. 105).

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Peter Meinke

Soneto na morte do homem que inventou as rosas de plástico



O homem que inventou as rosas de plástico morreu.
Reparem na sua importância:
as suas flores imperecíveis e imaculadas nunca murcham
mas resolutamente velam o seu túmulo através da escuridão.
Ele não compreendeu a beleza nem as flores,
que enredam os nossos corações em redes suaves como o céu
e nos prendem com um fio de horas efémeras:
as flores são belas porque morrem.
A beleza sem o seu lado perecível
torna-se seca e estéril, um palco abandonado
com uma floresta de enganos. Mas a realidade
dá razão à invenção deste homem; ele conhecia a sua época:
uma visão do nosso tempo impiedoso revela-nos
homens artificiais cheirando rosas de plástico.



(Tradução de Ricardo Castro Ferreira a partir de diversas fontes: aqui; aqui; aqui; aqui e aqui. Apesar da problemática fidedignidade destas fontes, decidiu-se publicar esta tradução de um poema que, palavras do tradutor, faz lembrar um certo outro "poema sobre (...) orquídeas e talvez por isso tenha chamado mais a [sua] atenção").

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Kirmen Uribe

O indizível



Não podes dizer Liberdade, não podes dizer Igualdade,
não podes dizer Fraternidade; não o podes dizer.
Não podes dizer árvore ou rio ou coração.
As leis antigas já não se aplicam.

As cheias arrastaram a ponte entre as palavras e as coisas.
Não podes dizer que a decisão de um déspota é um crime.
Não podes dizer que perdeste alguém
se uma memória mundana te perfura a alma.

A linguagem é imperfeita, os signos estão gastos
como velhas mós de moinhos que rodaram e rodaram em demasia. E, por isso,

não podes dizer Amor, não podes dizer Beleza,
não podes dizer Solidariedade; não o podes dizer.
Não podes dizer árvore ou rio ou coração.
As leis antigas já não se aplicam.

Mas, apesar disso, confesso que quando te oiço
dizer "meu amor" fico eléctrico,
seja verdade, ou mentira.



(Versão minha a partir da tradução inglesa de Amaia Gabantxo reproduzida em Six basque poets, selecção e introdução de Mari Jose Olaziregi, Arc, Todmorden, 2007, p. 155).

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Felipe Juaristi

Geografia



Eu nasci aqui,
no entanto não reconheço este lugar.
Falamos a mesma língua,
no entanto não entendo o meu povo.
Esta é a minha terra,
ela mata-me aos poucos,
no entanto regresso sempre ao seu estranho domínio
como um homem doente à sua dor.



(Versão minha a partir da tradução do basco para o inglês de Amaia Gabantxo reproduzida em Six basque poets, selecção e introdução de Mari Jose Olaziregi, Arc, Todmorden, 2007, p. 71).

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Gintaras Grajauskas

ando a erguer uma barricada...



ando a erguer uma barricada
à minha volta

junto o armário e a cama
e ponho o frigorífico ao seu lado

enviam-me um negociador
o rapaz das pizzas

é inútil tentar resistir, diz ele

é inútil tentar resistir, concordo

deixa-me como um vencedor
deixa uma pizza com miolo de caranguejo

chega um carteiro: ora aqui está
uma carta registada, assine nesta linha por favor

assino, sorrimos os dois
é inútil tentar resistir, diz a carta

não discuto, concordo educadamente:
não há sequer a mínima esperança

depois chega um mórmon - o senhor
conhece o plano de Deus, pergunta o mórmon

conheço, é inútil tentar resistir
digo eu, o mórmon desce as escadas murmurando

consolido a barricada: tapo brechas
com velhos jornais e pastilha elástica

eles tocam à campainha uma e outra vez

à porta estão o rapaz das pizzas
o mórmon e o carteiro

o que é agora, pergunto

tem razão, dizem eles, não faz sentido
tentar resistir, não há sequer a mínima esperança

é por isso que estamos no mesmo
lado da barricada



(Versão minha a partir da tradução inglesa de E. Alisanka e Kerry Shawn Keys reproduzida em Six lithuanian poets, Arc, Todmorden, 2008, pp. 107-109).

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Charles Baudelaire

Alquimia da dor



Um te acende, Natura, com ardor,
Outro em ti depõe um luto banal.
Aquele que diz algo sepulcral
A outro gritará: vida e esplendor!

Hermes desconhecido, que me assistes
E que agora e p'ra sempre me intimidas,
Tu que me vais tornando igual a Midas,
O mais triste dos alquimistas tristes.

Através de ti transmudo ouro em ferro
E o paraíso ponho a fogo e ferro;
Naquelas nuvens compondo um sudário

Descubro um cadáver onde amando erro,
E num celeste espaço portuário
Edifico amplo jardim mortuário.



Tradução de Ricardo Castro Ferreira.



***


(Nota: o tradutor, que colaborou já com este blogue em diversas ocasiões, fez-me chegar esta sua tradução do poema baudelairiano acompanhada de um aparato bibliográfico que considero conveniente elencar:
a) a versão original do poema, que reproduzirei mais à frente;
b) uma citação de Henri Michaux: "L'enfer, c'est le rythme des autres./ --------------------/ On parle à dés décapités/ les décapités répondent em "ouolof"". Esta citação serve, como talvez seja útil recordar, de epígrafe a Ouolof - poemas mudados para português por Herberto Helder, Assírio & Alvim, Lisboa, 1987;
c) uma afirmação algo enigmática sobre a natureza da tradução: "A tradução é, quanto a mim, a mais sublime e simultaneamente infame forma de morte.";
d) uma tradução literal do poema, da sua autoria, que abdica das rimas;
e) a tradução de Fernando Pinto do Amaral, que pode ser lida em As flores do mal, Assírio & Alvim, Lisboa, 1992, pp. 201-203;
f) a tradução da autoria de Maria Gabriela Llansol, a qual, por se relacionar directamente com a tradução acima apresentada, também reproduzirei de seguida (cf. As flores do mal, Relógio D' Água, Lisboa, 2003, pp. 175-177);
g) e, finalmente, um texto em prosa, sem título, de natureza reflexiva, que aqui será igualmente apresentado.
Infelizmente, não consigo respeitar, por deficiência do programa de texto do blogger, a estrutura estrófica dos textos apresentados.
***
Alchimie de la douleur (texto original)
L' un t'eclaire avec son ardeur,
L'autre en toi met son deuil, Nature!
Ce qui dit à l'un: Sépulture!
Dit à l'autre: Vie et splendeur!
Hermes inconnu qui m'assistes
Et qui toujours m'intimidas
Tu me rends l'égal de Midas,
Le plus triste des alchimistes;
Par toi je change l'or en fer
Et le paradis en enfer;
Dans le suaire des nuages
Je découvre un cadavre cher,
Et sur les célestes rivages
Je bâtis de grands sarcophages.
***
Alquimia da dor (tradução de Maria Gabriela Llansol)
Meu eu acentrado ilumina-se com teu fulgor
Meu eu gestor abafa-te em cê ó dois
Paisagem entre lixeira e esplendor
Me desencontro e te desfaço
Como explicar-te
Hermes ignoto que me guias?
Eis-me um exemplo de eficiência
A mais triste das alquimias
Sei fazer ferro a partir de ouro
Como se monta um inferno juntando afectos
No sudário das nuvens
Passam cadáveres aéreos que conheço
Nas margens do edénico
Urbanizo cemitérios
***
[Pode dizer-se que...]
Pode dizer-se que Allan Poe é a figura inaugural da modernidade no negativo. Mas também se pode dizer, sem errar demasiado, que, de facto, a figura inaugural é Charles Baudelaire. Na verdade, o primeiro é, em certa medida, uma invenção do segundo. A tal ponto que Baudelaire traduziu textos de Poe como uma forma de apropriação, chegando a deixar no ar que a fronteira entre um e outro era da ordem do idiscernível. Poe terá agradecido e nós por ele. A Baudelaire o que é de Poe e a Poe o que é de Baudelaire. Será assim tão importante a questão da assinatura? A literatura pode ser (in)apropriada.
Em todo o caso, porquê traduzir? Há o original, quem quiser que o leia na sua língua. Depois podemos pensar na questão da divulgação, é verdade - uma forma estranha de (con)verter. Faz parte da política romântica da cultura ao alcance de todos e coisa e tal.
Quanto a mim, pode sempre colocar-se uma questão pertinente. Um poema, se é um bom poema, tem qualquer coisa de cobra, serpenteia por todo o lado, e o leitor anda por ali a errar. A certa altura, pode surgir o gosto, a necessidade, o impulso de fixar o original na língua de "chegada" (propósito ingénuo, se da tradução surgir também um bom poema, porque imediatamente se torna também ele um réptil difícil de agarrar).
Eu cá não gosto particularmente de traduzir. Agrada-me a ideia de errar (um dos verbos mais saborosos da língua portuguesa, com tanta ressonância, física, psíquica, moral, eu sei lá!). Todo o poema é, afinal de contas, um erro, do ponto de vista do silêncio estrutural do ser. Uma interpretação, por consequência, ou não, será um erro também. E a tradução? Outro rotundo erro. Walter Benjamin, que tem quase sempre razão, fala da tarefa do tradutor, precisamente a propósito da tradução d' As Flores do Mal. Paul de Man, na Resistência à Teoria (título bastante significativo), recorda que, em alemão, o verbo traduzir se liga ao verbo desistir, e, assim, a tarefa do tradutor seria, de certa forma, uma maneira de desistir. A errância na sua máxima passividade ou inércia total.
Mas há, afinal de contas, uma tradução. Foi despoletada pela versão libertina de Gabriela Llansol. Pensei cá com os meus botões: vamos lá responder a isto com uma versão constrangida pela forma soneto. O resultado está aí. A duplicação do "erro" é, talvez, o ponto mais fraco, mas valeu a pena pelo achado: "um cadáver onde amando erro".
Quanto ao poema original, permanece intocado, como cobra que morde a sua própria cauda. Mas se se dá o caso de apanhar alguém pelo caminho, no fundo é de si mesma que se alimenta.
***
Obrigado, Ricardo, e desculpa o arranjo gráfico desastroso).

terça-feira, 13 de julho de 2010

Kestutis Navakas

O relógio de areia

(uma memória daqueles que viveram em vão)



(não me peçam que fale sobre a areia) nós
juntávamos conchas buscando o vazio
abrimos caixas

: vindos do nada e do nada
do não-barroco não-gótico

vindos do vento e do vento (cheio de papagaios e
tristeza) tivemos de escolher
de brecha em brecha (não me peçam!)

compreendes que isto é a vida - a tua?

(vê eles levam os mortos para a casa dos Judeus
percebes como um segundo te salva? mas
para onde vais) nós

bebemos o dicionário o whisky e as ressacas
foram terríveis até
nos remeterem ao silêncio

até nos separarem um do outro

(pela memória das árvores) até ao último grão de areia
suspenso na cela de vidro



(Versão minha a partir da tradução inglesa de Jonas Zdanys reproduzida em Six lithuanian poets, Arc, Todmorden, 2008, p. 49).

domingo, 11 de julho de 2010

Sigitas Parulskis

Esquilos



Os teus seios, quando sais da casa
de banho - se eu fosse um verdadeiro poeta diria
quando emerges do vale lilás - os teu seios são como
dois esquilos empoleirados num ramo,
dois pequenos narizes castanhos voltados ligeiramente para o lado
perscrutando de cima as novidades que este mundo tem para oferecer

se eu fosse poeta diria que um dilúvio de desejo
jorra até ao vale da minha pélvis quando vejo
esses esquilos a olharem-
-me como se encarassem não um deus, ou um fauno,
mas um velho e aborrecido
sátiro

poderosas correntes de desejo descem
das nuvens do meu cérebro através da folhagem dos pulmões
e das pedras dos rins, murmuram por entre os baixios do fígado
e então, emergindo da gruta mais funda do vale,
um tronco fortemente enraizado cresce
subindo até às folhas, ceptro da vida, axis mundi
isto é o que eu diria se fosse poeta
em vez disso estendo simplesmente as minhas mãos para ti, e os meigos
pequenos animais comem calmamente
das minhas palmas
e eu enteso-me só um bocadinho



(Versão minha a partir da tradução inglesa de Medeine Tribinevicius reproduzida em Six lithuanian poets, selecção e organização de Eugenijus Alisanka, Arc, Todmordem, 2008, pp. 87-89).

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Juan Luis Panero

Un étranger



Provoca uma certa melancolia,

uma tristeza decadente – seguramente literária—

como certas canções de entre guerras

ou páginas soltas de Drieu La Rochelle,

ver um homem só, afastado e distante,

no balcão de um bar com uma decoração cosmopolita.

Nessa idade incerta, tão incerta como a luz ambiente,

em que já não é jovem e contudo ainda não é velho

mas traz nos seus olhos a marca da sua derrota

quando com um gesto estudado acende um cigarro.

Muitos copos e muitas camas,

uma indubitável barriga mal dissimulada pela camisa,

o tremor, não muito visível, da sua mão segurando um copo,

fazem parte do naufrágio, da ressaca da vida.

Um homem que espera sabe deus o quê

e, inspirando o fumo, olha com declarada indiferença

as garrafas à sua frente, os rostos reflectidos por um espelho,

tudo com a particular irrealidade de uma fotografia.

E causa, ainda mais triste, um fundo suspiro reprimido,

ver no fundo desse copo – mágico caleidoscópio –

que esse homem és irremediavelmente tu.

Não resta então senão um sorriso céptico e distante

– aprendido muito cedo e útil anos mais tarde –,

e acabares a bebida de um só trago,

pagares a conta enquanto chamas um táxi

e dizeres-te adeus com palavras banais.

...

(Versão inédita de Ricardo Castro Ferreira; deste poema existem, pelo menos, duas outras traduções para português: de Joaquim Manuel Magalhães - em Poemas, Relógio D' Água, 2003, p. 33 - e de António Cabrita e Teresa Noronha - em Antes que chegue a noite, Fenda, 2000, p. 35 -).

sábado, 3 de julho de 2010

Daiva Cepauskaite

Como alcançar o paraíso



Tens de ter coragem
para escrever um poema,
tens de ter coragem
para não escrever um poema,
tens de dizer olá
e adeus,
tens de tomar vitaminas,
tens de respeitar todas as pessoas
e amar apenas uma,
mesmo que ela não o mereça,
tens de sofrer silenciosamente
e de permanecer pacientemente em silêncio,
tens de estar em silêncio quando alguém fala
e de falar quando toda a gente fica em silêncio,
tens de deitar o lixo fora,
de regar as flores,
de pagar o gás e a água,
os erros e os sucessos,
tens de dar o coração
por um olho e um olho
pelos dentes,
não deves pedir nada
quando desejas tudo,
e exigir tudo
quando não desejas nada,
tens de adormecer a horas
e de acordar a horas,
de encontrar dois sapatos para o pé esquerdo
porque os outros dois são do pé direito,
não esperar que alguém regresse
ou deixe de regressar
só porque alguém está à espera,
tens de olhar para o céu
porque ele jamais olhará
para ti,
tens de morrer porque é assim,
mesmo que não o
mereças,
tens de escrever um poema
nascido do medo
entre "sim" e "não",
vindo do "por quê",
com "para quê",
para ser "agradecido",
mesmo quando
não o merece.



(Versão minha a partir da tradução inglesa de E. Alisanka e Kerry Shawn Keys reproduzida em Six lithuanian poets, Arc, Todmorden, 2008. pp. 119-121).

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Aidas Marcenas

Um poema real



Esmaguei um mosquito inchado
com o meu sangue - a sua vida jorrou
de tal forma que senti pena, porque
afinal de contas, Arjuna, nunca, nunca

nunca poderia eu criar algo
mais real do que esta
marca sangrenta, este
poema, este cadáver
sugador de sangue.



(Versão minha a partir da tradução inglesa de Laima Vince reproduzida em Six lithuanian poets, organização de Eugenijus Alisanka, Arc, Todmorden, 2008, p. 37).

terça-feira, 22 de junho de 2010

Zaharia Stancu

A árvore vermelha



À beira das águas,
à beira das planícies,
à beira dos céus -
erguem-se árvores vermelhas.

Conheci os seus frutos: vermelhos.
A suas folhas conheci: vermelhas.
As suas sementes conheci: vermelhas.
O coração, o coração, a primeira árvore vermelha.



(Versão minha a partir da tradução castelhana de Darie Novaceanu reproduzida em Antología de la poesía rumana contemporánea, Editorialo Verbum, Madrid, 2004, p. 69).

sábado, 19 de junho de 2010

Hal Sirowitz

A arte do casamento



Viver com alguém é uma arte,
disse o pai, e uma vez que a tua mãe
é que é criativa, eu deixo-lhe
essa parte. Fico de lado
e digo, "Ainda não acabaste
de aperfeiçoar o nosso casamento?"
"Só posso alcançar essa perfeição",
diz ela, "arranjando um novo marido."
É assim que sei que ela continua amar-me.
Se assim não fosse, isto não seria uma piada.



(Versão minha; original reproduzido em Father said, Softskull Press, Brooklyn / Nova Iorque, 2004, p. 127).

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Zbynek Hejda

Depois da morte do meu pai...



Depois da morte do meu pai, tive um sonho:
estou em casa, sozinho, a campainha toca,
eu vou abrir a porta.
O meu pai está ali,
com o seu sobretudo, de chapéu,
sorrindo suavemente como sempre, prestes a entrar.
Mas depois pergunta-me se a mãe está em casa.
Esta pergunta é como um nó
que me aperta a garganta,
um precipício...
O meu pai ficou assim muito triste,
ele sabia a resposta,
eu não consigo descrever a minha angústia.
A mãe não estava em casa.
Ela que sempre aqui esteve -
mas, desta vez, saíra só por um instante
e estaría de volta dali a nada...
A sua ausência fatal significava porém
que o meu pai nunca mais
haveria de regressar.



(Versão minha a partir da tradução inglesa de Bernard O'Donoghue, Simon Danícek e Alexandra Büchler reproduzida em Six czech poets, Arc Publications, Todmordem, 2007, pp. 30-31).

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Ana Blandiana

Humildade



Nada posso fazer para que o dia
não tenha vinte e quatro horas.
Apenas posso dizer:
perdoa-me pela duração do dia.
Também não posso impedir
o voo das borboletas a partir das larvas.
Apenas posso implorar o teu perdão,
pelo voo das borboletas, pelas larvas,
perdoa-me pelas flores que se transformam em frutos
e os frutos em sementes e as sementes em árvores.
Perdoa-me pelos mananciais
que se convertem em rios e os rios
em mares e os mares em oceanos.
Perdoa-me pelos amores
que se transformam em recém-nascidos
e os recém-nascidos em solidões
e as solidões em amores...
Nada posso impedir.
Tudo segue o seu destino e nunca me pergunta nada.
Nem o último grão de areia, nem sequer o meu sangue.
Apenas posso dizer: perdoa-me.



(Versão minha a partir da tradução castelhana de Darie Novaceanu reproduzida em Antología de la poesía rumana contenporánea, Editorial Verbum, Madrid, 2004, p. 166).

domingo, 13 de junho de 2010

Mircea Dinescu

Vidas paralelas



Sem dor alguma
também eu estou a contar as estrelas
tal como o caraguejo
conta os glóbulos brancos do afogado.



(Versão minha a partir da tradução castelhana de Darie Novaceanu reproduzida em Antología de la poesía rumana contemporánea, Editorial Verbum, Madrid, 2004, p. 193).

terça-feira, 8 de junho de 2010

A. E. Baconsky

Auto-retrato no tempo



Fui semelhante ao bosque, ao moinho de vento,
aos calados, negros e desconhecidos cruzeiros,
às sombras dos cavalos
sobre as altas colinas da Moldávia,
fui até semelhante à silhueta dos estranhos
deuses enterrados na areia do mar.
Quanto tempo passou desde então?
Devem ter passado muitas chuvas, muitas tempestades,
devem ter caído muitas muralhas, e muitas hostes,
devem ter sido quebradas muitas correntes,
queimados e esparzidos muitos impérios
até se assemelharem a mim mesmo.



(Versão minha a partir da tradução castelhana de Darie Novaceanu reproduzida em Antología de la poesía rumana contemporánea, Editorial Verbum, Madrid, 2004, p. 106).

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Primo Levi

Cantar



... Mas quando começámos a cantar
As nossas boas canções insensatas,
Então vimos que todas as coisas
Voltavam a ser o que haviam sido.

Um dia não é mais que um dia:
Sete fazem uma semana.
Matar parecia-nos uma coisa má;
Morrer, uma coisa longínqua.

E os meses passaram mais que velozes,
Mas tínhamos tantos pela frente!
De novo fomos apenas jovens:
Nem mártires, nem santos, nem infames.

Isto e outras coisas vinham à nossa mente
Enquanto continuávamos a cantar;
Mas eram coisas como as nuvens,
Difíceis de explicar.


3 Janeiro 1946


(Versão minha a partir da tradução inglesa de Ruth Feldman e Brian Swann reproduzida em Collected Poems, Faber and Faber, Londres, 2ª edição (?), 1992, p. 6, e da tradução espanhola de Jeannette L. Clariond reproduzida em A una hora incierta, La Poesía, señor hidalgo, Barcelona, 2005, p. 27).

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Tudor Arghezi

O príncipe Tzepesh



No país há paz, e fora também;
os confins estão calmos como nunca,
e hoje, nos campos seguros,
os lavradores cantam e sulcam a terra.

No início da doce primavera
o povo recorda as lendas
e as folhas tremem nos ramos celestes -
também, em segredo, tremem os boiardos.

É claro, o Príncipe pensativo
está decidido a purificar o mundo.
Enfia uma estaca até ao pescoço dos homens
para que o cu tenha uma campainha.

Não há piedade nem demoras
para quem se opõe à justiça.
Religioso, o Príncipe, a cada estaca,
prepara as velas e o pudim de trigo.

Respeitador dos bons costumes,
para os grandes - sejam conterrâneos ou turcos -
tem estacas diferentes, forquilhas soberbas
que distinguem as suas hierarquias.

Podem ver-se os vizires nas alturas,
empalados sobre majestosos álamos,
e para os santos, os padres e os bispos
tem madeira santa e perfumada.

E é aqui que as Cortes do país se reúnem
para agradecer ao Príncipe a paz.
Ele está no seu trono. Silencioso.
A alma coberta de adargas.

E enquanto amigos e cortesãos com armaduras
brindam e erguem as taças de vinho
em honra das façanhas de Sua Majestade,
o Príncipe pensa nas estacas que merecem.



(Versão minha a partir da tradução castelhana de Darie Novaceanu, reproduzida em Antología de la poesía rumana contemporánea, Verbum, Madrid, 2004, p. 28).

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Primo Levi

Segunda-feira



Há alguma coisa mais triste do que um combóio
Que parte à hora certa,
Que só tem uma voz,
Que só tem uma via?
Não há nada mais triste do que um combóio.

Só talvez um cavalo de tiro.
Debaixo do governo das rédeas
Nem sequer pode olhar para o lado.
A sua vida é caminhar.

E um homem? Não é triste um homem?
Se vive largo tempo na solidão,
Se pensa que chegou a sua hora,
Também um homem é uma coisa triste.


17 Janeiro 1946



(Versão minha, a partir da tradução inglesa de Ruth Feldman e Brian Swann, reproduzida em Collected poems, Faber and Faber, 2ª edição, Londres, 1992, p. 11, e da tradução espanhola de Jeannette L. Clariond, reproduzida em A una hora incierta, La poesía, señor hidalgo, Barcelona, 2005, p.37).

sábado, 29 de maio de 2010

Roger Wolfe

Artigo não sujeito à legislação em vigor



Os poemas?
Alguns funcionam,
outros não.
Se o que queres
é uma garantia,
então compra um televisor.



(Versão minha; original reproduzido em Noches de blanco papel (poesía completa: 1986 - 2001), Huacanamo, Barcelona, 2008, p. 269).

domingo, 23 de maio de 2010

Jordi Virallonga

Confessar tudo



Queria dizer-te
que nunca passeei com ela,
que nenhuma montra devolveu a nossa silhueta reunida
nem o seu peito pressionou com o seu mudo acordeão os nossos cristais,

que nunca contemplei a sua nudez em lugares inquietantes,
que nem sequer sei o seu nome,
que não sei do que me estás a falar.

Queria dizer-te que não é verdade,
que no domingo andei a passear sozinho com o cão,
que o cão nunca a quis.

Queria dizer-te que nunca viveu comigo,
que deverias saber o que eu sei,
que era feia, corcunda e reaccionária,

dizer-te que sempre te fui fiel,
que nunca existiu,
que nunca jamais a quis.




(Versão minha; original reproduzido em Por vivir aquí - antologia de poetas catalanes en castellano (1980-2003), organização de Manuel Rico, prólogo de Manuel Vásquez Montálban, Bartleby, Madrid, 2003, p. 132).

quinta-feira, 20 de maio de 2010

José Agudo

A aprendizagem



Como o calor chega aos lençóis,
como chega o desejo aos lábios.

Com a premonição de uma bela recordação,
assim chega este dia,
calando até aos ossos.

Inventariarei os meus pertences
e esperarei que o sol aqueça
as minhas roupas e o meu corpo;
meditarei sobre as horas que vivi
e retirarei ensinamento dos meus fracassos.

E direi a mim mesmo que busco
aquilo que me aguarda
para saber o que espero
e a que sonhos convêm os meus esforços.

E não reclamarei mais ilusões
nem pedirei outro deus
que o deus que me compreenda
e encontre explicação para os meus pecados.

Elegerei o caminho que a idade
me mostre como bom,
conhecendo as forças que me assistem,
reconhecendo aquelas de que dependo.

E deixarei para trás quanto fui,
sem que o rancor me vença,
sem atender a mais disposições
além de estar em paz comigo.



(Versão minha; original reproduzido em Por vivir aquí - antologia de poetas catalanes en castellano (1980-2003), organização de Manuel Rico, prólogo de Manuel Vázquez Montálban, Bartleby, Madrid, 2003, p. 39).

terça-feira, 18 de maio de 2010

Dan Pagis

Escrito a lápis num vagão selado



Aqui neste vagão apinhado
eu Eva
e o meu filho Abel
se virem o meu filho mais velho
Caim filho de Adão
digam-lhe que eu



(Versão minha, a partir desta tradução de A. Z. Foreman e da tradução de Robert Friend reproduzida em The poetry of survival, organização, prefácio e introdução de Daniel Weissbort, Peguin, 2ª ed. (?), Londres, 1991, p. 221).

domingo, 16 de maio de 2010

Nizar Qabbani

Quando te vejo



Quando te vejo
Perco a esperança na poesia,
Como se apenas tu me pudesses criar.
És bela
E se penso na tua beleza
A minha respiração fraqueja,
A minha língua bloqueia,
As minhas palavras falham.
Salva-me de tudo isto. Sê menos bela
E permite-me reecontrar-me com a minha inspiração.
Sê uma mulher que se maquilha e perfuma,
Que engravida e dá à luz,
Sê como as outras mulheres
E reconcilia-me com a linguagem
Para que eu possa voltar a escrever.



(Versão minha a partir desta tradução de A. Z. Foreman e da tradução de Bassam K. Frangieh e Clementina R. Brown, reproduzida em Arabian love poems, A Three Continents Book, Lynne Rienner Publishers, London, 1998, p. 97).

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Federico Gallego Ripoll

Final



A vida é a oferta que agradeço
hoje. Toda a vida é hoje. Os teus olhos
e os meus olhos. O ponto em que se deram
é hoje. E até onde chegam e de onde
regressam, é hoje.

Toda a vida é hoje, e parece-me
suficiente o ter vivido tanto
se neste hoje de hoje cabe o teu lúcido
olhar sobre mim, e o futuro é
um hoje perpetuamente teu.

Concede-me agora
a felicidade de morrer, hoje que não tenho
nem passado nem medo.



(Versão minha; original reproduzido em Por vivir aquí - Antologia de poetas catalanes en castellano (1980-2003), organização de Manuel Rico, prólogo de Manuel Vásquez Montálban, Madrid, 2003, p. 48).

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Neus Aguado

As tábuas da lei



Saber que cometes adultério
para não voltares a cometê-lo
que matas para não voltar a matar
que roubas para não voltares a roubar
que cobiças para não voltares a cobiçar.
E ainda que não te apedrejem
nem te cortem a mão
nem te arranquem os olhos
saber que a alma está completamente mutilada e se arrasta peregrina
esbarrando com os anjos que um dia tu mesma mandaste sangrar.



(Versão minha; original reproduzido em Por vivir aquí - Antologia de poetas catalanes en castellano (1980-2003), organização de Manuel Rico, prólogo de Manuel Vásquez Montálban, Bartleby, Madrid, 2003, p. 114).

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Jordi Virallonga

Isso é tudo



Dá no mesmo, disseste, é só sexo,
porém esqueceste que nós vivemos dessas coisas;
só aqueles que fizeram a lei se ocupam
da virtude, da paz e da nobreza.

Essa justiça natural de que falas
fez-nos maus filhos, ateus e ladrões.
Esses homens, todavia, criaram deuses,
sacerdotes, polícias e orfanatos.

Nós comemos, bebemos e gozamos
pagando por isso o preço do salário.
Isso é tudo, somos mercenários, guardamos o Estado
e não merecemos consideração alguma.



(Versão minha; original reproduzido em Por vivir aqui - Antologia de poetas catalanes en castellano (1980-2003), organização de Manuel Rico, prólogo de Manuel Vásquez Montálban, Bartleby, Madrid, 2003, p. 137. Deste poeta existe em português Quanto sei de mim, um conjunto de poemas traduzido por Carlos da Veiga Ferreira, com prefácio de Nuno Júdice, Teorema, Lisboa, 2001; este mesmo poema aparece aí traduzido na p.32).

domingo, 9 de maio de 2010

José Agudo

Talvez um dia de novo



Talvez um dia de novo,
quando os anos e o inverno
corroerem os meus móveis, as minhas recordações,
o meu corpo e o meu passado,
e a minha memória se esqueça de mim mesmo,
e nada fique de mim,
e já nada me reconheça,
me recorde de ti
- jovem pirata de barcos de papel,
pequeno sonhador -
e do reino distante da minha infância.



(Versão minha; original reproduzido em Por vivir aquí - antologia de poetas catalanes en castellano (1980-2003), organização de Manuel Rico, prólogo de Manuel Vásquez Montálban, Madrid, 2003, p 29).

sexta-feira, 7 de maio de 2010

(Hors-série)

Excertos de dois e-mails de um leitor devidamente identificado:
"Viva (...),

(...) ando a desenvolver um "ciclo do papel higiénico" em momentos análogos ao que o nosso HH narra em "Vida e obra de um poeta". Como me deu um ataque súbito de angústia da influência, estou agora mesmo a tentar desenvolver a argumentação que te convença a incluir o primeiro "borrão" (escrito numa primeira versão em papel higiénico) no Trapézio. A questão é que, não se tratando tecnicamente de uma tradução, a verdade é que os textos deveriam ter sido escritos por uma pessoa que falasse outra língua (não me perguntes como o sei) que não só nunca existiu como, existindo, jamais os teria escrito. Estranho? Eu sei, mas acho que é precisamente essa qualidade de estranheza alcançada que faz com que não desmereça de figurar na tua antologia digital. (...) Convencido? Aqui vai o Borrão (o primeiro de uma reciclagem de mitos clássicos):

Mito reciclado de Orfeu e Eurídice

(...) no último instante, Orfeu lembrou-se do seu canto, o qual era para si bem mais valioso que mil Eurídices. Olhando para trás, fixou a beleza silenciosa da amada e decidiu imortalizá-la nos seus versos, enquanto via, serenamente, a sombra de Eurídice desaparecer (...)


Dir-me-ás, não querendo discutir a qualidade do dito, que nem sequer se trata de um poema e eu respondo-te, então, que não chega a ser sequer uma prosa. Em desespero de causa sugiro que se corte às postas respeitando a pontuação:


(...) no último instante,
Orfeu lembrou-se do seu canto,
o qual era para si bem mais valioso que mil Eurídices.
Olhando para trás,
fixou a beleza silenciosa da amada e decidiu imortalizá-la nos seus versos,
enquanto via,
serenamente,
a sombra de Eurídice desaparecer (...)


(...) podes identificar-me como autor "contrafeito", ou como alguém que de algum modo opera uma contrafacção (não é impunemente que se desfaz um mito de amor - ainda por cima tão associado ao acto poético - e o transforma num puro gesto de crueldade), como um moedeiro falso, enfim, para os devidos efeitos Ricardo Castro Ferreira serve. E, assim, as agora já vinte linhas de fama ficarão cozidas à minha biografia, até ao momento tão obscura.
(...)

abraço"


(Ricardo Castro Ferreira colaborou anteriormente neste blogue com estes dois trabalhos de tradução).

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Neus Aguado

Conselhos domésticos



Levar a alma a passear como quem leva um cão,
não permitir que te ladre nem que te lamba,
engomá-la depois de bronzeada
e procurar que não se queime, ainda que arda.
Consumir o fogo restante e, se não há mais remédio,
mandá-la de vez para a fogueira ou para a tinturaria.



(Versão minha; original reproduzido em Por vivir aquí - antologia de poetas catalanes en castellano (1980-2003), organização de Manuel Rico, prólogo de Manuel Vásquez Montalbán, Bartleby, Madrid, 2003, p. 116).

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Federico Gallego Ripoll

Alguém parte para o exílio



Alguém parte para o exílio.

E não sei se sou eu
o homem que se vai
ou o país que fica.



(Versão minha; original reproduzido em Por vivir aquí - antologia de poetas catalanes en castellano (1980-2003), organização de Manuel Rico, prólogo de Manuel Vásquez Montálban, Bartleby, Madrid, 2003, p. 44).

sábado, 1 de maio de 2010

José Agudo

Ne me quitte pas



Entro num bar
e ouve-se o Ne me quitte pas
de um Jacques Brel
nostálgico e distante.

Peço uma cerveja,
acendo um cigarro
e penso mais uma vez
que deveria largá-lo.

Sem saber por quê
recordo-me de sessenta e oito
e da Paris de então.
Eu era todavia muito jovem
e não estive em Paris
em maio de sessenta e oito.
Não estive em Paris.
Ne me quitte pas...

Acendo outro cigarro
e lembro-me que a minha filha
anda pelos quinze
ou tem dezasseis, não sei.

Irrita-me esta cerveja quente,
o fumo, a luz tísica das lâmpadas,
os gritos desses miúdos,
o murmurinho das conversas,
o cheiro a cozinha e a fritos.
- Barman,
que a música não se oiça!

Este lugar deprime-me
e no entanto aguento.



(Versão minha; original reproduzido em Por vivir aquí - antologia de poetas catalanes en castellano (1980-2003), organização de Mnuel Rico, prólogo de Manuel Vásquez Montálban, Bartleby, Madrid, 2003, p. 32).

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Roger Wolfe

Poesia



Pergunta-me o que é a poesia.
A poesia, respondo-lhe,
é uma manada de vacas a atravessar uma ponte
por cima de uma auto-estrada.

Então olha-me, e sorri,
e isso é também
poesia.



(Versão minha; original reproduzido em Noches de blanco papel (poesía completa 1986-2001), Huacanamo, Barcelona, 2008, p. 49).

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Roger Wolfe

Glosa de Celaya



A poesia
é uma arma
carregada de futuro.

E o futuro
é do Banco
Santander.



(Versão minha; original reproduzido em Noches de blanco papel (poesía completa 1986 - 2001), Huacanamo, Barcelona, 2008, p. 262).

sábado, 24 de abril de 2010

José María Micó

Breve História de Espanha



"Quando é preciso descobrir um Novo Mundo
ou domar o mouro,
ou há que medir o cinturão de ouro
do Equador, ou levantar sobre o profundo
espanto do erro negro que pesa
sobre a Cristandade o pensamento
que é amor em Teresa
e é claridade em Trento,
quando há que consumar a maravilha
de alguma nova façanha,
os anjos que estão à beira do seu Trono
olham para Deus... e pensam em Espanha."
(José María Pemán)




Tenho em casa o Poema
da Besta e o Anjo,
inveja de bibliófilos:
"Saragoça, Edições Jerarquía,
abril de mil novecentos e trinta e oito,
Segundo Ano Triunfal."
Certa dedicatória
do poeta a um amigo
seguramente médico
faz mais raro o meu exemplar.
Na primeira página, o tipógrafo
das Indústrias Gráficas Uriarte
dispôs sabiamente,
sobre papel precioso,
umas letras douradas:
"Franco, Calvo Sotelo, José António,
Sanjurjo, Mola."
Ainda se torna mais belo
o brilho desses nomes.
Com o seu fulgor acende-se
a lembrança e leva-me
às mesmas paragens,
ao campo descuidado de Pina de Ebro,
abril de mil novecentos e trinta e oito:
ali um mouro domado
por algum anjo espanhol daqueles
que olhavam para Deus
ceifou com tiros de espingarda cristã,
não com uma cimitarra feroz e herege,
os dias do soldado
Francisco Gómez Cuéllar,
morto aos trinta anos
com tempo suficiente
para manter viva a minha linhagem.




(Versão minha; original reproduzido em Por vivir aquí - antologia de poetas catalanes en castellano (1980-2003), organização de Manuel Rico, prólogo de Manuel Vázquez Montálban, Bartleby, Madrid, 2003, pp. 249-250).

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Daniel Bristol

Devolucionista



Dantes eu era um oceano cheio de vida. Podia dar conta
de tudo, pois era com isso que se contava. Alargava-me
por milhas e costumava abarcar toda a terra. Costumava ser tudo
para toda a gente; terás só de acreditar na minha palavra.

Costumava ser um grande lago. Costumava ser o maior de todos.
Era o ventre de onde nascia a lua logo que o sol se punha.
Estava sempre a brilhar, chovesse ou fizesse sol, fosse dia ou noite.
Fui o lugar aonde trouxeste a tua namorada para a pedir em casamento.
Costumavas meditar sobre os teus dias à beira das minhas águas.

Depois transformei-me num pequeno lago perfeito para velejar. Os melhores
amigos passavam muito tempo a pescar e a rir até que o dia
terminava. Eu costumava ser o local de onde assistias ao fogo
de artifício do 4 de Julho. E gelei em Dezembro quando fiquei a saber que
o teu melhor amigo tinha morrido. Costumava até abraçar o chão
onde jaz agora o cão da tua família.

E depois fui um rio, correndo rapidamente, saltando o tempo. Costumava
transformar rochas aguçadas em pedras perfeitas para lançar sobre a água.
Costumava respirar de um modo constante. Costumava seguir o meu próprio
ritmo. Tu costumavas chegar-te a mim apenas para lavares os pés sujos.
Juntos observávamos as estrelas; costumávamos verter a mesma quantidade
de lágrimas. Vi-te florir e crescer; juntos partilhámos os melhores anos.

Mas agora sou um afluente debaixo de uma ponte desconhecida, algures. O tempo
encolheu-me, e aqui estou na minha solidão. Alguns dias são
melhores do que outros; a minha água flui e depois seca. Ter-me-ia
ajudado ter alguma companhia, ter junto de mim a minha amiga.
Mas na verdade não sei quando voltarei a vê-la.



(Versão minha; o original, reproduzido em Best modern voices: words for the new millennium, vol. 1, Wordclay, 2010, p. 5, pode ser lido algures por aqui).

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Katherine Hearst

Em boa companhia



E qual é o problema se tenho
o cabelo encaracolado
e as ancas largas?
Talvez não tenha os
dedos longos e elegantes que às vezes
gostaria de ter.
Posso colher margaridas na mesma.

Confesso -
não sou capaz de dizer o ano
em que Napoleão combateu em Waterloo
ou o número atómico do urânio.

É verdade que quando canto
me esqueço das palavras -
o meu chuveiro ainda não correu comigo.

Insuficiências
não me faltam.
Muitas coisas que não sou capaz de fazer,
muitas coisas que não faço
suficientemente bem.

Por outro lado, danço no ritmo certo.
Tenho o último parágrafo de O Grande Gatsby
guardado na memória
e faço um batido de fruta dos diabos.

Por cada parte minha que é insatisfatória
há uma parte
inteiramente satisfatória -
talvez até encantadora
ou, nos meus melhores dias,
maravilhosa.

Eu sou a minha única e fiável companhia nesta vida,
os amigos são arrastados pela corrente, a família desaparece e
os amantes vão para onde vão os amantes por muito
que queiramos que eles fiquem.

Tudo bem.
Eu gosto de mim.

E sou uma companhia muito boa.



(Versão minha; original reproduzido em Best modern voices: words for the millenium, vol. 1, Wordclay, 2010, pp. 70-71).

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Roger Wolfe

Sabedoria



Uma mulher
que passa de bicicleta
às duas da manhã,
maravilhosas pernas morenas
dando aos pedais
enquanto a brisa lhe levanta o vestido
e revela
um perfeito milagre
de carne feminina em movimento.

Os nossos olhos
cruzam-se por um momento
e já se foi.

São coisas como esta
que te fazem dar conta
do pouco que realmente sabes
de nada.



(Versão minha; original aqui).

terça-feira, 6 de abril de 2010

Roger Wolfe

Pálpebra



Pedro Salinas
disse num poema
que não quer deixar de sentir
a dor da ausência
da mulher que ama
porque isso é tudo
o que dela fica:
a dor.
Não me recordo das suas palavras exactas.
Ele di-lo melhor do que eu.
Eram outros tempos.
Salinas está morto.
A mulher que ele amava também.
Em breve o estaremos todos.
A vida é uma simples pálpebra.
Abre os olhos
e fecha-os.



(Versão minha; o original pode ser lido aqui).

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Frances Driscoll

Vida real



Mas na vida real, começo eu. Só que o Doug
interrompe: O que aconteceu naquela noite foi
a vida real. Eu não sei do que é que ele está
a falar. Vida real é a minha irmã
estudar todas as semanas as notícias de bancarrota
que vêm no jornal e continuar a ter
dificuldades com as suas consoantes fricativas.
É o meu vidente descobrir nas cartas setas
de amor e correntes de vida. É o meu filho dizer-me
que eu sou a pessoa mais pateta que ele conhece
e trazer-me, de um concerto para casa, um par
de louras embriagadas do Mississippi,
fugidas de uma viagem de finalistas, que se recusam
a responder às minhas perguntas - Onde
está o resto da turma. Onde estão
os responsáveis por elas. É enxaguar os pratos
no lavatório da casa de banho depois dos canos da cozinha
terem rebentado sem aviso prévio e, cansada
das poses de Electra derramada na loiça chinesa
azul, arranjar espaço numa despensa
que alguém fez sem ter em conta as minhas
necessidades - e sem uma única prateleira.
Vida real é a Diana a escrever de Head
of the Tide, Maine, dizendo que anda feliz da vida
a reparar móveis estragados e a fixar lâmpadas.
É a Mary Kay a comer batatas fritas com passas
e a sentir-se furiosa com o pai dos seus filhos
por ele ter adoecido com pneumonia
numa viagem ao campo que ela era a única
a merecer. É a Bonnie, reconciliada com a estabilidade
negada por um homem, a produzir sons quase inaudíveis
enquanto vai engolindo alface misturada com geleia.
Na vida real uma menina balança-se
de um ramo de árvore florida sobre o meu terraço.
Tu sabes o segredo das árvores, grita ela
para a sua amiga. Quem espera
sempre alcança. Na vida real o meu peito fica apertado
e eu perdoo-lhe todas as flores brancas
que as suas pernas descuidadas atiraram ao chão.
Não esta menina. Nunca esta menina. Não
na vida real.



(Versão minha; original reproduzido em Poetry from "Sojourner" - a feminist anthology, organização e selecção de Ruth Lepson e Lynne Yamaguchi e introdução de Mary Loeffelholz, University of Illinois Press, Urbana e Chicago, 2004, pp. 49-50).

sábado, 27 de março de 2010

Nizar Qabbani

Eu nunca fui rei



Eu nunca fui rei
Nem provenho de uma família real
Mas pensar que agora me pertences
Dá-me uma sensação
De poder sobre os cinco continentes,
De controlo da chuva
E dos carros triunfais do vento,
De posse de milhares de acres
Sobre o sol,
De domínio sobre povos
Que nunca antes foram dominados,
E de prazer de brincar com as estrelas do sistema solar
Como uma criança brinca com conchas.
Eu nunca fui rei
Nem quero ser;
Mas quando sinto que adormeces
Na palma da minha mão
Imagino
Que sou um Czar da Rússia,
Um Xá da Pérsia.



(Versão minha a partir da tradução inglesa de Bassam K. Frangieh e Clementina R. Brown reproduzida em Arabian Love Poems, A Three Continents Book, Lynne Rienner Publishers, Londres, 1998, p.71).

sábado, 20 de março de 2010

Fabio Pusterla

Sábado em Sintra



O último pombo,
aquele que continua quando o resto do bando
já anda espalhado pelos telhados,
oculto entre muros,
o solitário em voo picado sobre as praças,
cego pelo sol,
talvez simplesmente mais silencioso do que os outros, indiferente
a esse estúpido cacarejar horizontal,
- enquanto desajeitadamente se perde,
grão a grão, o alimento oferecido -,
aquele que se atira para o vazio
de uma aventura imaginária, uma ameaça,
o medo de um assobio,
e extrai disso o voo e converte o perigo
num jogo de descidas e subidas bruscas,
a fuga para uma insensata corrida com a sombra
rápida da gaivota,
uma sombra que verdadeiramente voa e desaparece,
o pássaro que procura por todo o lado o vento das ruas
e das chaminés, que mergulha no trânsito e deixa
um monte repugnante de penas cinzentas
mesmo ao pé da tampa do esgoto,
não o olhes.



(Versão minha a partir da tradução inglesa de Chad Davidson reproduzida em New european poets, organização e introdução de Wayne Miller e Kevin Prufer, Graywolf Press, Saint Paul, Minnesota, 2008, p. 52).

quarta-feira, 17 de março de 2010

terça-feira, 16 de março de 2010

Nuala Ní Dhomhnail

O destino da linguagem



Disponho a minha esperança na água
neste pequeno barco
da linguagem, tal como alguém pode pôr
um menino

num cesto de folhas iridescentes
entrançadas
com o fundo calafetado
com betume e resina,

colocando depois o conjunto entre
as junças
e os juncos da margem
de um rio

apenas para que vá daqui para ali
sem saber onde pode acabar;
no colo, talvez,
de alguma filha do Faraó.



(Versão minha a partir da tradução inglesa de Paul Muldoon, reproduzida em New european poets, organização e introdução de Wayne Miller e Kevin Prufer, Graywolf Press, Saint Paul, Minnesota, 2008, p. 328).

terça-feira, 9 de março de 2010

Thomas Brown

Respiração



às vezes
conhecemos alguém
que nos deixa sem respiração
e
temos medo
de voltar a respirar
sabendo
que ao fazê-lo
tudo pode mudar
e
queremos ficar presos
para sempre
a esse momento
em que tudo
parece tão perfeito
e certo
mas
não temos alternativa
a não ser
respirar de novo
e fazê-lo outra vez
até
que chegue o dia em que
já não o conseguimos fazer
e
podemos ter a esperança de que
entre esses momentos
a pessoa
que em tempos nos roubou a respiração
volte a fazê-lo
uma e outra vez
prometendo
sempre devolver-no-la
embora
planeando sempre
roubá-la
mais uma vez .



(Versão minha, com a colaboração de C.; original reproduzido em Best Modern Voices: words for the millennium, Wordclay, 2008, pp. 11-12).

sábado, 6 de março de 2010

Spencer Schenk-Wasson

Onde o céu acaba



O ceú acaba onde as montanhas
Perfuram o nevoeiro do anoitecer

O céu acaba onde a pintura da natureza
Atravessa o laranja dourado do horizonte

O céu acaba algures entre
As luzes cintilantes da cidade e o vazio do espaço

O céu acaba num lugar onde a tua
Consciência oscila entre a realidade e a beleza

O céu acaba num lugar que é tão magnífico
Que pode ser só imaginação tua



(Versão minha; original reproduzido em Best Modern Voices: words for the new millennium, Wordclay, 2008, p. 8).

quarta-feira, 3 de março de 2010

Nizar Qabbani

Quando encontrares um homem



Quando encontrares um homem
Que transforme
Cada partícula tua
Em poesia,
Que faça de cada um dos teus cabelos
Um poema,
Quando encontrares um homem
Capaz,
Como eu,
De te lavar e adornar
Com poesia,
Hei-de implorar-te
Que o sigas sem hesitação
Pois o que importa
Não é que sejas minha ou dele
Mas sim da poesia.



(Versão minha a partir da tradução inglesa de Bassam K. Frangieh e Clementina R. Brown, reproduzida em Arabian Love Poems, A three Continents Book, Lynne Rienner Publishers, Londres, 1998, p. 135).

segunda-feira, 1 de março de 2010

Nizar Qabbani

Eu conquisto o universo com palavras



Eu conquisto o universo com palavras.
Desonro a língua materna,
A sintaxe, a gramática,
Os verbos e os nomes,
Violo a virgindade das coisas
E crio uma língua nova
Que esconde o segredo do fogo
E o segredo da água.
Ilumino a nova era
E detenho o tempo nos teus olhos,
Apagando a linha que separa
Este instante da passagem dos anos.



(Versão minha a partir da tradução inglesa de Bassam K. Frangieh e Clementina R. Brown, reproduzida em Arabian Love Poems, A Three Continents Book, Lynne Rienner Publishers, Londres, 1998, p. 223).

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Nizar Qabbani

Eu não sou professor



Eu não sou professor
Para te ensinar a amar,
Também os peixes não precisam de um professor
Que os ensine a nadar
E os pássaros de um professor
Que os ensine a voar.
Nada pelos teus próprios meios.
Voa pelos teus próprios meios.
O amor não tem manuais
E os maiores amantes da história
Não sabiam ler.



(versão minha a partir da tradução de A. Z. Foreman publicada aqui e da tradução de Bassam K. Frangieh e Clementina R. Brown reproduzida em Nizar Kabbani, Arabian Love Poems, A Three Continents Book, Lynne Rienner Publishers, London, 1998, p. 99).

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Ruth Buchman

Narrativa



Começa num pequeno quarto.
O vestido de cerimónia que a mãe dela lhe comprou, o seu cabelo
cuidadosamente penteado, as mãos rídiculas dele.

Despidos, a súbita distância dos seus corpos.
Ela podia fechar os olhos, vê-lo de novo
com aquelas calças, a camisa nova e direita,
como os lábios dele lhe pareceram húmidos antes de a beijar.

Pelo menos ele não é pesado.

Depois, não vão esquecer o estranho impulso
que os empurrou um para o outro. Nem como, quando os seus corpos se uniram, cada
um se encontrou sozinho na surpresa, desconhecendo-se.

Se pudessem dormir, teria havido o acordar, o toque
de um olhar entre os dois. Mas ela desejava um duche,
e ele gostava de ter aprendido a fumar, gostava de ter aprendido
mil coisas para se reconciliar com ela, e consigo próprio.

Passarão anos antes que ele descubra
uma doce recordação do corpo dela
vestido pelos lençóis, um braço sobre o cobertor,
à espera. Ela lembrará o seu riso excêntrico, o modo
como ele se cobriu a si mesmo com as mãos, cheio de vergonha.



(Versão minha; original reproduzido em Poetry from "Sojourner" - a feminist anthology, organização de Ruth Lepson e Lynne Yamaguchi, introdução de Mary Loeffelhoz, University of Illinois, Urbana e Chicago, 2004, p. 27).

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Ana Pérez Cañamares

A trincheira



O mal da trincheira
não é a sua húmida estreiteza.
O barro e o sangue abrigam
somos muitos aqui
e as fotos que nos enviaram de casa
nunca se desgastam.

Há sempre tempo para uma partida de cartas.
Para o momento íntimo e brincalhão
de tirarmos piolhos uns aos outros.
Alguém que dança ao ritmo
de batuques distantes com pedaços de madeira
nas metralhadoras
ou um bom imitador de generais
que nos faz rir.

O mal da trincheira
é que não sabemos quando
seremos obrigados a abandoná-la.



(versão minha; original reproduzido em Resaca - Hank Over: un homenaje a Charles Bukowsi, organização de Paxti Irurzun e Vicente Muñoz Álvarez, Caballo de Troya, Madrid, 2008, pp. 180-181).

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Pablo G. Bao

não são cães, são flores



chove

espreito pela janela
e vejo
esse cão da rua
que atravessa o passeio
debaixo de uma chuva forte

eu estou debaixo do meu tecto
em lugar seguro
e parece-me bem

e parece-me bem
que esse cão da rua
trema debaixo da chuva
como uma flor do asfalto.



(original reproduzido em Resaca - Hank Over: un homenaje a Charles Bukowski, organização de Patxi Irurzun e Vicente Muñoz Álvarez, Caballo de Troya, Madrid, 2008, p. 171).

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Karmelo C. Iribarren

A alba


Para Pablo G. Bao



Aquele lugar inóspito
fantasmático
frio
onde nunca
tinhas um cigarro
e os táxis
iam sempre
na direcção contrária.



(Versão minha; original reproduzido em Resaca - Hank Over: un homenaje a Charles Bukowski, organização de Patxi Irurzun e Vicente Muñoz Álvarez, Caballo de Troya, Madrid, 2008, p. 75).

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Kate Rushin

Respondendo à questão: alguma vez pensaste em suicídio



Suicídio?!?!
Chavala, tás doida?
Eu tenho é medo de não viver
o suficiente

Tenho um medo de morte de alturas
Carros na bisga
Doenças esquisitas
Crocodilos
Electricidade
E campónios

Olha agora o aspecto que dava
Eu atirar-me duma cena qualquer
Tenho é montes de coisas p'ra fazer
E não há tempo p'ra nada

Deixa-me dizer-te
Se alguma vez me ouviste
Falar em acabar com a minha fraca figura
Então morde aqui a ver se eu deixo
Senta-te comigo até que esta nóia passe
E se alguma vez me
Encontrarem caído em algum lado
Não deixes que te digam que foi suicídio
Porque não foi

Eu tenho medo de alturas
Camiões a alta velocidade
Crocodilos
Electricidade
Drogas
Campónios
E conservas caseiras de feijão-verde

Com isto tudo
A afligir-me
Que aspecto é que dava
Matar-me





(Versão minha, em colaboração com C.; original reproduzido em Poetry from "Sojourner" - a feminist anthology, organização de Ruth Lepson e Lynne Yamaguchi, introdução de Mary Loeffelhoz, University of Illinois Press, Urbana e Chicago, 2004, pp. 161-162).

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Rade Drainac

A minha fome...



A minha fome é infinita e sempre vazias as minhas mãos.

À noite descendo as ruas da cidade levo a lua nos meus dedos
e abandono a minha tristeza sob as janelas de mulheres infelizes.

Eu daria tudo e no entanto não tenho nada.
A minha fome é infinita e sempre vazias as minhas mãos.



(Versão minha a partir da tradução inglesa de Charles Simic reproduzida em The Horse Has Six Legs - An Anthology of Serbian Poetry, organização e tradução de Charles Simic, Graywolf Press, Saint Paul, 1992, 33).

domingo, 31 de janeiro de 2010

Elaine Equi

Adoecer juntos



No mundo pós-moderno
a sequela é sempre superior

ao original
e assim é até possível

que alguém como Tony Perkins
conheça uma miúda simpática no Psico 3

uma ex-freira suicida
também ela atormentada

por fantasias sexuais
de modo que ele pode ensinar-lhe alguma coisa

tão fora de moda como dançar
o fox-trot

e ela pode oferecer-lhe
uma bebida no seu quarto.

No Bates Motel
a água jorra do mesmo chuveiro

no qual a famosa cena do duche começa
mas agora parece agradavelmente referescante.



(versão minha; original reproduzido em Illinois Voices - an anthology of twentieth-century poetry, organização de Kevin Stein e G.E. Murray, University of Illinois Press, Urbana e Chicago, 2001, pp. 273-274).

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Halfdan Rasmussen

Sobre a perfeição



Cada vez que vou escrever o poema perfeito,
coisa que tento uma e outra vez,
a mão põe-se a tremer e ataca-me o reumatismo
e a esferográfica produz borrões.

E quando estou tranquilo e se aplacou o reumatismo
e a minha esferográfica escreve persistentemente,
é a minha mulher que entra de dois em dois minutos
a peguntar se terminei o supracitado poema.

E quando por fim logro redimi-lo
mediante dores e aflições
faltam esse tremor, esse reumatismo, esses borrões
que o perfeito tem, se é que existe.



(versão minha a partir da tradução espanhola de Francisco J. Uriz, reproduzida em Afinidades afectivas - antologia de la poesía nórdica, prólogo e selecção do tradutor, Libros del Innombrable, Saragoça, 2002, p. 122).