segunda-feira, 30 de julho de 2012

Ingemar Leckins

Preso



Vivi toda a minha vida dentro de um coco.
Era escuro e apertado,
especialmente de manhã quando precisava de me barbear.
Mas o que me custava mais era não ter maneira
de entrar em contacto com o mundo exterior.
Se não se desse o caso de alguém descobrir o coco,
se ninguém o partisse, então eu estaria condenado
a viver toda a minha vida dentro dele, e talvez até de morrer dentro dele.
          Morri dentro do coco.
Alguns anos depois encontraram-no,
partiram-no e descobriram-me encolhido e enrugado lá dentro.
          "Que desastre!"
          "Se o tivéssemos descoberto só um pouco mais cedo..."
          "Talvez assim o pudéssemos ter salvado."
          "Talvez haja por aí mais alguns presos como ele,"
disseram, e começaram a partir em bocados cada coco
que apanhavam.
           Inútil! Sem sentido! Uma perda de tempo!
Uma pessoa que escolhe viver num coco!
Uma pessoa como essa é um caso num milhão!
                    Mas eu tenho um cunhado que
          vive numa
          bolota.



(Versão minha a partir da tradução inglesa de May Swenson reproduzida em This same sky, organização de Naomi Shihab Nye, Aladdin Paperbacks, Nova Iorque, 1996, p. 152).

sexta-feira, 27 de julho de 2012

De fio a pavio



Alexandra Lucas Coelho - A. M. Pires Cabral - Ana Cássia Rebelo - Ana Salomé - Carlos Mota de Oliveira - John Mateer - Luís Filipe Parrado - Manuel Filipe - Manuel Paes - Maria da Conceição Caleiro - Pedro S. Martins - Ricardo Álvaro - Rui Miguel Ribeiro - composição e paginação de Inês Mateus - tea for one - Lisboa - 2012 - 24 páginas - pedidos & informações: t41editores@gmail.com

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Vasyl Holoborodko

Queria ser uma pessoa



Para não ter de dançar - amputou uma perna
(deixou até de visitar os amigos),

para não combater e gesticular indecências - arrancou os dedos
(era incapaz até de tirar a pele a uma maçã),

para não ouvir palavras obscenas - arrancou as orelhas
(deixou também de ouvir as belas),

para não lhe chamarem narigudo - torceu o nariz
(e ficou com ele achatado),

para não ver os sapos - furou os olhos
(já não pode contemplar as rosas),

para que não lhe escapasse alguma incoerência - cortou a língua
(também não teve mais palavras gentis para a amada).

Cada dia que passava
fazia uma operação plástica ao corpo
para ficar igual aos outros, a todos os outros.



(Versão minha a partir da tradução castelhana reproduzida em Poesía ucraniana del siglo XX - Una iconografia del alma; prólogo, selecção e tradução de Iury Lech, Litoral/Ed. UNESCO, Torremolinos/Málaga, 1993, p. 175).

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Deitar a língua de fora




Abel Neves - Alexandre Sarrazola - António Barahona - David Teles Pereira - Diogo Vaz Pinto - Inês Dias - Jaime Rocha - Luís Filipe Parrado - Rosa Maria Martelo - Rui Caeiro - Tiago Araújo - ilustrações de Luís Henriques  - Lingua Morta - Lisboa - 2012 - 92 páginas - pedidos & informações: edlinguamorta@gmail.com

domingo, 22 de julho de 2012

Christine M. Krishnasami

[ao lado de um pedra...]



ao lado de uma pedra com três
mil anos duas
papoilas de hoje



(Versão minha; original reproduzido em This same sky; selecção de Naomi Shihab Nye, Aladdin Paperbacks, Nova Iorque, 1996, p. 100).

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Tarapada Ray

O irmão do meu bisavô



O irmão do meu bisavô tinha um passatempo peculiar -
Costumava coleccionar penas
          de diferentes pássaros
          de diferentes cores, de diferentes sítios.
O seu quarto, o corredor, a escada
Estavam cheios de milhares de penas coloridas e descoloridas.

No dia da sua morte
Um pouco antes do sol nascer, de madrugada,
O irmão do meu bisavô
          subiu ao telhado da sua casa
E lançou as penas para o ar da manhã.
As penas flutuaram nos raios dourados
          do sol nascente.
Algumas cairam por perto.
Outras foram para longe.
Outras ainda voaram até à eternidade, pelo céu.

Não, não é possível escrever uma história
          sobre este assunto
Mas algumas dessas penas continuam a voar
          pelo céu.



(Versão minha a partir da tradução inglesa do autor reproduzida em This same sky, selecção de Naomi Shihab Nye, Aladdin Paperbaks, Nova Iorque, 1996, p.56).

terça-feira, 17 de julho de 2012

Xuan Bello

Variações sobre o meu nome



Tu,
que poderias ser João Velho
na claridade azul de Sintra.
Lá longe, distante e amigo,
pressentes o teu senhor El-Rei
dom Sebastião.

Tu,
que percorres terras remotas
e a quem chamam Jean Vieilh.
Recordas aqueles dias
tão tristes em Auvergne
enquanto escutas pela primeira vez
- imensa e rara -
a voz do deus do rio:
Mississipi.

Tu,
John Oldman,
pirata em Tortuga:
o próprio Henry Morgan
há-de dar-te um tiro.

Tu,
que serias Juan el Viejo
lá nas terras de Sória:
lavram nos campos os bois
no outono do Criador.

E tu,
que estranho,
chamar-te Xuan Bello
e estar aqui, em Oviedo,
passando visões obscuras
para o claro asturiano.
Saber que a tua pátria
fica sempre noutro sítio:
ali onde não estás.



(Versão minha a partir do original asturiano e da tradução castelhana do autor reproduzidos em Toma de tierra - Poetas en lengua asturiana: Antología (1975-2010); organização de José Luis Argüelles, Trea, Gijón, 2010, pp. 475-477).

domingo, 15 de julho de 2012

Fatos Arapi

Esses que continuam a amar



Esses que não têm que comer,
Quando sonham com comida
Deixem-nos pensar em mim e em ti.
Esses que não têm fogo,
Quando sonham com o fogo
Deixem-nos pensar em mim e em ti.
Os insones deste mundo
Com os olhos abertos como a noite
No abismo das suas noites
Deixem-nos pensar em mim e em ti.
Esses que já morreram
E continuam a amar -
Deixem-nos pensar em mim e em ti.



(Versão minha a partir da tradução inglesa reproduzida em Lightning from the depths - An anthology of albanian poetry; organização e tradução de Robert Elsie e Janice Mathie-Heck, Northwestern University Press, Evanston/Illinois, 2008, p. 178).

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Berta Piñan

À maneira de Szymborska



Chegados a este ponto
talvez tudo devesse ser mais simples,
a palavra lua não deveria nomear nada mais
do que a lua,
e os rios deveriam seguir até ao seu destino
sem serem alterados
pelas metáforas.
Talvez a palavra solidão não devesse
significar outra coisa além da ausência
de acontecimentos
e a palavra silêncio pudesse servir só
para calar os ruídos.

Com a língua talvez tudo devesse ser
mais simples, sem voltas
nem requebros, deixando-nos
com duas ou três questões
para seguir em frente:
um porquê, algum não sei.
E, depois, fechar a porta
que, neste caso,
deveria significar unicamente
fechá-la.



(Versão minha a partir do original asturiano e da tradução castelhana da autora reproduzidos em Toma de tierra - poetas en lengua asturiana: antología (1975-2010); selecção de José Luis Argüelles, Trea, Gijón, p. 445).

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Eqrem Basha

Menu Balkânico



Não ponhas a mesa, querida
Vamos jantar fora
Sair cedo
E voltar tarde
A vida aqui na Europa mudou
Vamos lá, querida, vamos sair
Beber ponche
No Admiral Bar
E um coupe royale
Na esplanada do Café Montreal
Na sala de bilhar do Benny
Tentaremos as carambolas de costas
Beberemos um cappucino
Na Cafetaria Marilyn
E um martini com azeitona no Florida Club
Não ponhas a mesa, querida
Vamos jantar fora
Na Pizzaria Miami
Comer uma pizza New Jersey
Um escaloppe viennense no Restaurante Roma
E depois iremos ao Parma's
Para uma coupe macédonienne
E quando se fizer tarde
Voltaremos para casa
Para esvaziarmos os intestinos
Numa latrina balcânica.



(Versão minha a partir da tradução inglesa reproduzida em Lightning from the depths - an anthology of albanian poetry, organização e tradução de Robert Elsie e Janice Mathie-Heck, Northwestern University Press, Evanston/Illinois, 2008, p. 218-219).

terça-feira, 3 de julho de 2012

Nel Amaro

Declaração de princípios


Para Oski S.



Um homem fala em inglês
(esse homem é meu irmão).

Outro homem fala em asturiano
(é meu inimigo).

O primeiro homem é um mineiro
(norte-americano).

O segundo homem é um patrão
(asturiano).

Nem sempre a língua nos
faz irmãos.



(Versão minha a partir do original em asturiano e da tradução castelhana do autor reproduzidos em Toma de tierra - poetas en lengua asturiana: antología (1975-2010); selecção de José Luis Argüelles, Trea, Gijón, 2010, p. 71).

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Vasyl Holoborodko

Labirinto



O autocarro vermelho há-de deter-se
e eu encontrar-me-ei no labirinto:
levarei muito tempo a descer os degraus,
gastando a sola dos sapatos,
pelo que irei à procura de um sapateiro,
entrarei com os pés descalços
pisando a pedra fria
e a desorientação será ainda maior.

Desesperado hei-de sentar-me nas escadas,
abrirei o jornal e começarei a ler
para encontrar a saída deste labirinto.
Então descobrirei um sinal:
talhado à mão indica a direcção que devo tomar;
penso, com uma alegria indizível, que eu sou o guia
e novamente hei-de pôr-me a caminho
perdendo cada vez mais a orientação.



(Versão minha a partir da tradução castelhana reproduzida em Poesía ucraniana del siglo XX - una iconografia del alma; prólogo, selecção e tradução de Iury Lech, Litoral/Ed. UNESCO, Torremolinos/Málaga, 1993, p. 178).